fevereiro 05, 2005

The Lurker: Diário de uma Terra Estranha - Caderno I

O título desta série de posts é um pequeno jogo de palavras com o livro (quase) homônimo de J.P. Sartre -Diário de uma Guerra Estranha, que se constitui no diário que este escreveu quando serviu o exército, como meteorologista, na Alsácia (de setembro de 39 a junho de 40). O diário se divide em vários cadernos e alguns foram perdidos a mais de meio século por um amigo de Sartre, em um trem. Destruídos, talvez, ou quem sabe a pessoa que os tenha encontrado prefira mantê-los ocultos... Foram publicados tão somente os de números III, V, XI, XII e XIV. Naturalmente, não se pretende aqui aquilatar este blogador ao gênio do existencialismo, mas apenas aproveitar uma idéia para uma situação que, mutatis mutandis, leva alguma similitude - o dia a dia na terrae incognita, a vida do soldado no "quase front".

Explico: desta vez fui meter-me em terras do Tio Sam, em um tempo em que estrangeiros por lá não são muito bem quistos. Há que se pensar se algum dia o foram, ou se o serão - este povo é estranho às vezes, mas fica mais abespinhado quando vira "corporation". De conclusivo sabe-se que lá os xenófobos gramam soltos. Aliás, eles andam mordendo-se uns aos outros, perdidos em um pesadelo paranóico imposto por uma mídia controlada e que conta à população o que o governo quer que ela saiba. Pobre país "livre e democrático", acuado por seus preconceitos e medos. Sua ignorância e prepotência o mantém refém de si mesmo.

Mas basta disto. Em síntese: como não tinha companhia nesta viagem, achei por bem comprar um caderninho e ir conversando comigo para depois poder conversar com os outros... afinal, de que serve a viagem sem um companheiro para dividir o pitoresco, o cômico e o desastroso? Esta idéia assaltou-me ainda no aeroporto de São Paulo, mas onde se compram essas coisas as vinte e uma horas? O que deu para arranjar, inicialmente, foi um bloco de "vales", destes que se usa quando não se tem troco. Pensei: "Se o diário não prestar, pelo menos isto poderá valer alguma coisa..." Infame. Mesmo em pensamento.

Este é meu convite para que você viaje comigo. A idéia é, portanto, transcrever os comentários mais ou menos da maneira em que eles se apresentam no original, como se fosse possível ler o que está lá, diretamente. Enfim, vamos ao que interessa.

Quarta-feira, 05 de janeiro de 2005

A viagem [BSB-GRU] começou muito bem, com toda uma fileira de seis poltronas do Airbus A330 só para mim. Nem em primeira classe se tem tanto espaço. Entretanto, o prognóstico da conexão para Miami permanece aterrador. Miami é o quintal brasileiro (e cubano, já que se tocou no assunto) da América e, segundo creio, não deve ter evoluído tanto assim desde a década de 80 quando lá estive pela última vez. Bem que pedi a conexão por Atlanta, que é um aeroporto que conheço mais ou menos bem. O embarque é à meia noite e isto não contribui em nada para a redução do estado de ansiedade.

Chegar a São Paulo foi a parte fácil e transcorreu sem sobressaltos. Apenas a mudança da sala Vip do Diners Club, que aumentou de tamanho mas ganhou três lances de escada para acesso. O que os arquitetos tem na cabeça? Vão gostar de produzir barreiras arquitetônicas assim no inferno. Como de praxe, aproveitei para fazer um lounging, ligações a quem de direito, checada básica de e-mails e um capuccino. Apenas para, mais tranqüilo, ir descobrir as novidades de Guarulhos.

A mais interessante é um "bar de rua" chamado On The Rocks (Terminal 2), cujo balcão abre diretamente para a área de circulação de passageiros, em frente ao embarque doméstico. Algumas mesas foram espalhadas também nesta calçada, o que torna o ambiente bastante agradável, como um bistrô americanizado ou algo assim. Maurício, o garçom responsável por meu bem-estar no balcão [eu sou louco por um balcão de bar] foi bastante solícito em trazer-me a primeira Heineken da viagem. Normalmente não bebo antes de voar - medo da ressaca que ataca na aterrissagem - mas fazendo isto antes da decolagem estou apostando minhas fichas em que a "maldita" não tem visto de entrada ou permanência nos EUA e que o Homeland Security Departement não vai permitir que fique mais esta "ilegal" por lá. Oremos.

A cerva desceu redonda, sendo seguida de uma irmã e por um misto quente honesto, enquanto Maurício e o "cabeçudo", seu colega, se desmanchavam para atender duas alemãs e seus bloody marys - cheios de boas intenções estes rapazes. Nisto a simpática trilha sonora que seguia o modelo de Stephane Poupognac (lembrando-me as catacumbas da Lutécia) é interrompido por um gaitista e sua banda, espremida no notebook cheio de MP3. Muito talentoso o cavalheiro e muito cioso de sua seleção musical: ao som de New York, New York pedi a terceira Heinny (a esta altura já estávamos mais íntimos).


Mais um tempo e quando, finalmente, ele descambou para o João Gilberto e seu "Lobo Bobo" decidi que já era hora de tocar o barco e ir ver o pessoal da Federal para cuidar de minhas coisas. Na passagem dei uma olhada "preemptiva" no freeshop. Nota mental: lembrar do Glenfiddich 15 anos, série especial, em promoção na Brasif.

Entrando no avião, [B777] o primeiro sinal de desconforto... minha poltrona fica do lado do banheiro - e reclina só até a metade porque bate na parede deste. Esqueça o sono desta noite. Bolas.


Eis que se aproxima um senhor e pergunta se eu me importaria em trocar de lugar com um amigo... mas não há sinal deste. Preocupei-me em perder minha janela que, banheiro ou não banheiro, sempre permite um conforto quando a gente se escora na fuselagem e dorme. Mas, droga, cedi o lugar pois realmente é muito mais interessante em uma viagem longa ir conversando com um amigo - e gostaria que, um dia, me fizessem o mesmo tipo de gentileza. Sem ter informação sobre o lugar do amigo, preparei-me para uma poltrona dessas de meio do corredor, espremido entre um pernambucano roncando e um adolescente inquieto...

Qual não foi, então, a surpresa de descobrir que trocara uma janela por outra, mas esta na primeira fileira, fronteira da classe executiva e com todo o espaço do mundo para esticar minhas pernas. Mais ainda, sem ninguém do meu lado... não entendi nada da troca que me pediram, mas agradeci minha sorte: não é todo dia que uma boa intenção não recebe uma paulada com recompensa. Belisquei a desculpa para jantar que a American Airlines serviu, virei para o lado e apaguei, algo satisfeito com o início da viagem.

The Lurker Says: Man is condemned to be free; because once thrown into the world, he is responsible for everything he does. (Jean-Paul Sartre)

A seguir o Caderno II (Miami - Philly)